sobre querer melhorar situações sobre as quais não temos qualquer influência....

Lhasa de Sela "De Cara a la Pared"
Lembro-me muitas vezes do mestre António. Carpinteiro, maquinista de cena, figurante, público, homem dos sete ofícios e indispensável ao normal funcionamento da estrutura. 
O mestre António tinha um problema que o acompanhava desde o início da sua juventude: um amor incondicional às drogas. não deixava por isso de ser funcional. era organizado e tinha uma rotina: nos primeiros dias do mês, António usava o magro ordenado para matar as saudades do pó, a partir do dia 5 ou 7, começava um tratamento de metadona. 

Mestre António conhecia tão bem o teatro e o seu fazer que não era raro conseguir, sozinho, resolver ou antecipar problemas que podiam facilmente arruinar um espectáculo. Ao mesmo tempo, vezes havia (sempre no início do mês), em que tomava atitudes inexplicáveis que faziam da sua presença uma ameaça constante de acidente. A propósito dessa capacidade inata de inferir no decorrer dos espectáculos, um dia disse: "eu tanto os salvo como dou cabo deles". e era verdade. 
Num início de mês invernoso, mestre António estampou-se de mota contra a grade de um jipe e morreu. mas só durante uns minutos. contava ele que, assistiu às tentativas de reanimação na primeira fila: de cima. E preocupado com a aflição das pessoas, e estando ele na sua nova forma de "espírito pairante", tomado de uma calma sobrenatural, tentou tranquilizá-los dizendo-lhes: "deixem estar, está tudo bem, não se preocupem". era assim o meu mestre António: não guardava rancores, mesmo que o deixassem morrer. Felizmente ninguém o ouviu e António voltou à vida para um internamento de meses no hospital com um braço partido, uma perna escaqueirada e várias outras mazelas.
Quando o fui visitar pela primeira vez, mestre António estava muito calmo, matutando na sua experiência extra-corpórea. 
Eu, que sempre tive dificuldades em lidar com hospitais e mortes (ou quase mortes), reagi mal ao deparar-me com o homem cheio de ferros numa perna, gesso num braço e no outro um inchaço brutal que lhe triplicava o tamanho dos dedos. Eu queria que ele estivesse confortável, queria aligeirar-lhe os dias e perguntei-lhe se precisava de alguma coisa. Encolhendo os ombros disse que, para já nada lhe fazia falta. Provavelmente o gesto de ombros queria dizer-me o óbvio: ele não se conseguia mexer daí que nada lhe serviria para nada. Mas não desisti, eu queria fazer o bem. E porque sabia que gostava muito de ler, perguntei se queria uns livros para passar o tempo. mestre António, incapaz de me mandar à merda, que era o que eu merecia, solta um suspiro profundo, encolhe os ombros e diz: "oh anamar, sim, mas quando eu puder virar as páginas".

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